A imagem que nós, brasileiros, temos dos japoneses, de um modo geral, é de um povo organizado, disciplinado, conservador, e por vezes até preconceituoso com o que é muito diferente (os próprios não-descendentes de japoneses devem ter pensado isso ao ouvir um discriminante gaijin).
Essa imagem, originada, acredito, por muitos anos de descendentes de japoneses tímidos e estudiosos (NERDS!) que pudemos ver nas escolas e empresas, está aos poucos se modificando com as novas gerações, cada vez mais adaptadas ao estilo ocidental considerado moderno e despojado.
Mesmo assim, ainda existe no imaginário popular ocidental a visão de um Japão repleto de pessoas com visual parecido, com rotinas semelhantes e extremamente fechadas.
No entanto, arrisco dizer que os japoneses são, algumas vezes, muito mais abertos e desinibidos do que nós, ocidentais. E um grande exemplo dessa situação, para mim, está nos mangás. Ao fazer uma breve análise sobre o público que consome história em quadrinhos no Japão, é fácil perceber a amplitude de mercado que o mercado atinge.
Quadrinhos para crianças, para meninas, meninos, adolescentes, homens e mulheres já adultos, eróticos de todos os tipos, a indústria de mangás no Japão é bastante variada e abrangente, enquanto, por aqui, muitas vezes o fã de mangá é tachado de “criança” e “infantil”. E as próprias histórias contidas nos mangás podem se revelar mais desenvolvidas e maduras do que os enredos que vemos por estas bandas. E é assim que chego em Card Captor Sakura.
Você já ouviu falar em Card Captor Sakura?
Card Captor Sakura é daqueles animes que todo otaku conhece. Feito pelo estúdio CLAMP, conta a história da jovem Sakura Kinomoto que, ao abrir um livro mágico, liberta pelo mundo algumas cartas mágicas, chamadas Cartas Clow, e se torna a guardiã das cartas, com a missão de recuperá-las e usá-las para o bem.
Não vou entrar em mais detalhes, até por achar desnecessário, já que o anime fez bastante sucesso por aqui, mesmo tendo um traço um pouco infantil. Mas é do mangá que eu quero falar.
Diferenças entre o anime e o mangá
O mangá de Card Captor Sakura, um dos primeiros lançados no Brasil pela editora JBC, traz algumas diferenças em relação à sua versão animada. As mais visíveis são a ausência da carismática Meilin Li e de várias das 52 cartas que aparecem no desenho – no mangá são apenas 19.
Mas um detalhe que me chamou a atenção é a forma como são tratados os relacionamentos amorosos no mangá. No anime todas as relações são suavizadas, de modo a tornar o mangá mais vendável para o Ocidente. Assim, mesmo o inocente amor entre a Chiharu e o Yamazaki fica meio que subentendido, mas nunca demonstrado claramente. No mangá, no entanto, todas as relações tem claras demonstrações de afeto, o que é bastante inusitado para uma história em quadrinhos considerada infantil.
Os casais vinte do mangá
Para começar, os casais mais convencionais do enredo: o casal protagonista, Sakura e Shoran, e os amigos de infância Chiharu e Yamazaki. Que esses dois casais existem efetivamente e que estão destinados a ficar juntos para toda a eternidade é claro e cristalino desde o início da história, então nem vale muita menção. Apenas vale mencionar que, enquanto no anime a Sakura só se declara para o Shoran no filme realizado depois do término da série e que o outro casal (que eu me lembre) não demonstra tanta afeição, o mangá é bem mais simples e direto.
Os relacionamentos menos convencionais
Daí para frente acho que os relacionamentos e sentimentos por parte das personagens já não são mais tão convencionais. O mais óbvio é o homossexualismo demonstrado por algumas personagens. Mas, enquanto no anime isso fica levemente insinuado, no mangá é bastante declarado. Ou alguém pode ter alguma dúvida (não que alguém REALMENTE tivesse alguma dúvida) dos sentimentos de Touya por Yukito ao ver essa cena?
E, é claro, o amor incondicional da Tomoyo pela nossa protagonista. Como disse um amigo meu esses dias: Cara, quando eu era criança nem tinha me tocado que a Tomoyo gostava da Sakura daquele jeito. Pois então, lendo o mangá, não fica nenhuma dúvida.
E, bom, pra não passar batido, dá para dizer que chega a ser algo meio genético, já que o sentimento da mãe da Tomoyo, Sonomi Daidouji, pela mãe da Sakura, Nadeshiko Kinomoto, era, no mínimo similar.
A partir disso entramos numa área um pouco mais incomum. Como é o caso do amor entre Rika e o professor Terada. Na série animada, nos parece – ao menos a mim sempre pareceu – um daqueles casos típicos de amor platônico entre uma aluna e seu professor. No mangá, no entanto, eles são noivos! É, definitivamente, não é das coisas mais usuais que a gente vê por aqui.
O que também seria pedofilia, mas não sei se é bem o caso, já que, teoricamente, ele é uma “criança” muito mais velha do que se aparenta, é o amor entre Kaho Mizuki e Eriol Hiiragizawa. Se for considerar que ele é a reencarnação do Mago Clow (é, é spoiler, mas, ah, a essa altura, você já devia saber disso) e, teoricamente, tem a mesma idade do pai de Sakura – já que os dois, como reencarnações do mago Clow, foram criados ao mesmo tempo, e eu juro que não vi isso no anime – então ele é adulto e o amor deles nem é tão estranho. Mas, vendo essa cena, não dá para afirmar…
E, por fim, o caso mais peculiar de todos. No fim da série, quando os poderes do mago Clow são divididos entre suas duas reencarnações, o pai de Sakura, o professor Fujitaka Kinomoto, recebe os poderes de sua antiga reencarnação. Com isso, ele pode rever sua querida Nadeshiko, que morreu quando Sakura tinha 3 anos! Na verdade, não sei como termina isso, se Nadeshiko vai para o paraíso numa coisa meio Ghost ou se fica por aqui e revive seu amor por Fujitaka, mas, a julgar pela cena mostrada no mangá, a segunda opção pode ser seriamente considerada.
Os japoneses são mais conservadores que nós?
Enfim, aonde eu quis chegar com tudo isso? Que o mangá de Sakura tem tendências homossexuais, pedófilas e é um atentado à decência? Não! Apenas que a sociedade japonesa, mesmo vista como conservadora, tem uma infância e uma juventude com uma mente de tal forma aberta que idéias como as apresentadas acima não caracterizam uma ofensa moral ou social, é apenas mais uma situação que pode acontecer numa história de ficção, ou mesmo situações que irão acontecer na vida real.
Simples assim, até banal, mas são coisas que a grande maioria da nossa sociedade teria mais dificuldade em aceitar. Basta ver a repercussão que sempre é gerada quando personagens de novelas brasileiras, feitas para adultos, resolvem assumir a homossexualidade. Nesse ponto, talvez nós sejamos mais conservadores. Fica a reflexão.
P.S. Todas as imagens retiradas do site Onemanga.com.
P.P.S. Particularmente, eu adoro esses relacionamentos estranhos de Card Captor Sakura! Por mim ela ficava com a Tomoyo!
P.P.P.S. Para matar a saudade:
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